Projeto
PROJECTO
A mera existência dos heterónimos é a vexata quaestio dos estudos pessoanos. A interpretação crítica da heteronímia oscila entre uma ênfase na multiplicidade ou na unidade de um conjunto de textos que um nome próprio, Fernando Pessoa, subscreve. Este projecto pressupõe a unidade de toda a produção escrita de Pessoa, tomada como co-incidente num só plano. Tomando como ponto de acesso a noção de heterónimo, propomo-nos fazer uma análise exaustiva da história crítica e dos problemas associados a esta questão.
A mera existência dos heterónimos é a vexata quaestio dos estudos pessoanos. Pessoa procurou assegurar a legibilidade da sua obra aos olhos dos contemporâneos e da posteridade. Fê-lo em textos éditos e inéditos sobre a génese e identidade dessas figuras fácticas, na dramaturgia dos seus colóquios, elogios mútuos e prefácios, ou na infatigável escrita de inéditas e abortadas listas de publicação das obras desses nomes segundos. E, no entanto, a primeira ocorrência do termo “heterónimo” é tardia (1928, presença), sendo assegurada até então por termos funcionalmente inertes como “pseudónimo”, ou circunlóquios visando denotar a aparente dramaticidade das figuras.
A interpretação crítica da heteronímia oscila, como seria de prever, entre uma ênfase na multiplicidade, em que Pessoa é descrito como mero rendez-vous de impulsos mediúnicos ou dramáticos dotados, por baptismo, de um nome próprio (Alberto Caeiro et alii), ou uma ênfase, comparativamente menor, na unidade de um conjunto de textos que um nome próprio, Fernando Pessoa, subscreve. A primeira ênfase é atraente a interpretações contemporâneas regidas por modelos que contestam qualquer noção filosófica robusta de “sujeito”. A segunda, a intérpretes que tomam como boa a posição de Pessoa quando, em 1932, advoga a publicação das suas obras sob o seu nome próprio, por ser já demasiado tarde, diz, para manter o “disfarce absoluto”. Esta aporia da unidade e multiplicidade de Pessoa é, naturalmente, objecto de análise para os seus melhores intérpretes. João Gaspar Simões, por exemplo, considera a heteronímia um inconsequente exercício fútil que a incorporação do Pessoa ortónimo na genuína tradição lírica portuguesa viria a reparar. Eduardo Lourenço, por seu turno, descreve Alexander Search como um “proto-Pessoa” em que se unifica de modo incipiente a tópica ulteriormente tratada pelos heterónimos maiores. José Gil descreve esse proto-Pessoa como o “plano de imanência” sobre que se abate, desenhando-o, o sensacionismo sustido em que consiste a obra do autor. A questão da heteronímia parece um dado essencial inevitável em toda a interpretação de Pessoa.
O projecto de investigação pressupõe a unidade de toda a produção escrita de Pessoa, tomada como co-incidente num só plano, independente de género. Este pressuposto forte requer naturalmente um argumento que revele a coerência, próxima ou remota, de todos os textos nesse plano unitário. Tomando como ponto de acesso a noção de heterónimo, propomo-nos 1) recensear toda a ocorrência do termo, ou de perífrases pré-1928 que o denotem, e analisá-las, assim como as reflexões em torno dos problemas da autoria e do livro 2) rever toda a literatura crítica sobre Pessoa, em grande parte decorrente da auto-interpretação de Pessoa, serialmente difundida a interlocutores escolhidos (os editores de presença, por exemplo) ou deixada inédita pelo autor. O lugar e o estatuto desse trabalho auto-interpretativo, que Pessoa conduziu de forma continuada mas errática, devem ser revistos, sem que se assuma que neles reside uma verdade material inquestionável (a carta de 1935 a Casais Monteiro é o melhor exemplo desta ofuscação), 3) uma análise exaustiva de todos os projectos editoriais de Pessoa. O espólio de Pessoa alberga múltiplos projectos de edição e publicação da obra, expressos em apontamentos, notas e listas em grande parte ainda inéditas, em que se mostram variáveis não só o título atribuído a um mesmo texto como a inclusão deste num conjunto dado ou a sua atribuição a um nome. A reunião e análise deste material são decisivas, por nele se evidenciar como a subsunção de um texto num nome não pode ser dissociada de um pensamento editorial e como deste pensamento depende a atribuição de um sentido de conjunto à obra, permanentemente transformado e nunca definitivamente fixado.
Os resultados das análises, conduzidas por uma equipa maioritariamente constituída por jovens investigadores, e acompanhada por um conjunto de nomes maiores neste domínio, serão publicados numa série de volumes, e debatidos num seminário permanente e em encontros abertos a todos os que queiram associar-se ao debate.