Por mera obra do acaso, segundo afirma o próprio, Humberto Brito descobriu nas páginas de O Notícias Ilustrado, de 4 de Agosto de 1929, uma Novela Curta assinada com as siglas "A. de C.", ou seja, “Álvaro de Campos” (cf. "Ela é que é o cão").
Procurando por este texto nas edições existentes, ele encontra-se, de facto, já publicado em "Pessoa por Conhecer" (pp. 349-350) e "Prosa de Álvaro de Campos" (p. 70). Ambas as edições, no entanto, transcrevem o texto a partir do testemunho do espólio (BNP/E3 71A-57r), desconhecendo o facto de o mesmo ter sido publicado neste suplemento do Diário de Notícias. Modestamente, Humberto Brito confessa-se não demasiado extasiado com esta descoberta filológica, o que o salva do fetichismo dos papéis em que cai tão boa gente, assim como descansado por não ter, neste caso, a necessidade de demonstrar uma autoria já evidenciada pelo testemunho publicado em pelo menos duas edições.
O facto de existir esta publicação, no entanto, não só confere um novo sentido a este misterioso texto, que termina com esse “Ela é que é o cão!” digno de um “raios parta!” (cf. o post de Humberto Brito), por proximidade temática e agora também editorial associado, como defende o mesmo, a "A Origem do Conto do Vigário", artigo publicado duas semanas depois e assinado em nome de Fernando Pessoa, como confirma ou corrige algumas das anteriores intuições dos editores. Em "Pessoa por Conhecer", Teresa Rita Lopes defende que este texto teria sido "preparado nitidamente para publicação", porque "adopta regras ortográficas que habitualmente enjeita", o que vem a ser confirmado. Em "Prosa de Álvaro de Campos" o mesmo texto é aproximado da data de 1932, o que é negado pela evidência da sua publicação em 29.
Não por acaso, este texto surge num mesmo período em que Pessoa publica, no mesmo jornal, vários artigos relevantes, construindo enredos narrativos que merecem a maior atenção da crítica. Disto são exemplo dois artigos sobre uma homenagem ao poeta árabe Al-Mutamide, publicados em Julho de 28 e assinados em nome de Augusto Ferreira Gomes, onde se evidencia uma intervenção de Pessoa, e que se relacionam diretamente com outro publicado anonimamente sobre uma viagem de Afonso Lopes Vieira ao Brasil, em Maio do mesmo ano. Nestes, Pessoa constrói uma narrativa em torno do suposto significado mítico de uma data, a de 29 de Maio de 1928, relacionando-a com uma fundamentação mítica da sua própria obra (cf. a este respeito Sebastianismo e Quinto Império, pp. 156-158 e 295-299).
Não nos podemos esquecer que é no final da década de 1920 e início de 30 que Pessoa reelabora os fundamentos da sua obra, desde logo na Tábua Bibliográfica, publicada em Dezembro de 28, e que retoma ou inicia a escrita de obras decisivas como o Livro do Desassossego, os textos do Barão de Teive e as Notas para a Recordação do meu mestre Caeiro, de Álvaro de Campos. Sabendo como escolhia e preparava muito bem as suas intervenções, não deixam de intrigar estes novos testemunhos de textos interligados, neste caso sobre o Vigário e a vigarice, e assinados tanto em nome de Pessoa como de Campos. Esta divisão da autoria foi, aliás, igualmente esboçada no caso de um inquérito sobre o Fado, ao qual Pessoa responde no mesmo jornal, a 14 de Abril de 29. Encontra-se no espólio um esboço que atribui parte da resposta, num tom de repúdio, oposto ao do ortónimo, ao mesmo Campos (v. Sebastianismo e Quinto Império, pp. 125-126 e 293-294).
Pedro Sepúlveda